Na superfície do
continente africano, a geologia desenha um enorme Y. Isso porque a
crosta oceânica emerge à superfície abrindo falhas titânicas que
se alargam a velocidades imperceptíveis e que, quando alagadas, se
transformam em mares. Duas dessas falhas começaram a se formar há
30 milhões de anos e hoje são o mar Vermelho e o golfo de Áden. A
terceira, o pé do Y, começou um pouco antes, mas talvez não siga
adiante. Mesmo assim, já deixou uma imensa marca que sobe desde a
Tanzânia através do Quênia e da Etiópia. É o chamado Vale do
Rift. No ponto de união dessas três falhas se encontra um deserto
de sal, a chamada depressão de Danakil, uma área de mais de 100
quilômetros quadrados que, à primeira vista, parece um interminável
tapete de sal, mas que esconde fascinantes fenômenos minerais e –
quem sabe – também as respostas a perguntas cruciais sobre a
natureza da vida.
Na realidade, o
Danakil não está coberto por um tapete, mas por um manto de sal de
dois quilômetros de espessura depositado durante as sucessivas
ocasiões em que o mar Vermelho invadiu essa depressão nos últimos
200.000 anos. Sob essa camada salina existe um magma quente que tenta
alcançar a superfície. A jazida de sal, elástica e impermeável,
resiste às investidas magmáticas, mas acabou por se romper,
deixando sair os líquidos, vapores e gases presos em seu interior. A
colina criada pelo impulso do magma e moldada pela mineralização é
conhecida como Dallol, um lugar que os afar, os habitantes da região,
acreditam ser o lar de um espírito maligno.
A subida ao Dallol é
feita por uma encosta cor de chocolate. Ao amanhecer, a temperatura
já supera os 30 graus. A paisagem é árida. Não há rastro de
vida. O ambiente que se respira é inquietante, pelo aroma de enxofre
e pela presença dos soldados etíopes que nos escoltam nesta
insegura fronteira com a Eritreia.
O Dallol é um campo
hidrotermal sem igual. Por todo lado há fontes termais de onde jorra
água fervente. Essa água é na verdade uma salmoura supersaturada.
Quando brota, todo esse sal excedente se cristaliza formando pilares
que inicialmente são de um branco brilhante e puro. A acidez das
águas é brutal, quase 500 vezes maior que a do limão. Depois do
sal, quando a temperatura da água baixa algumas dezenas de graus, o
enxofre se condensa pintando de amarelo fluorescente os pilares
inativos. As águas ácidas empoçam graças a represas construídas
pela cristalização do próprio sal. O ferro, em contato com o
oxigênio da atmosfera, oxida-se reduzindo o pH até o valor mais
baixo já encontrado em meio natural, quase 10.000 vezes mais ácido
que o limão. As sucessivas mineralizações causadas pela oxidação
tingem as águas de cores vibrantes, do verde lima ao verde jade, do
laranja ao vermelho, os ocres e chocolates. Você anda sobre uma
crosta de sal que sabe que é oca e quebradiça. Percebe que debaixo
dos pés há algo que ameaça sair à superfície. O borbulhar
intimidador que se ouve e se sente sob o chão ardente por onde
escapam gases e vapores faz medir cada passo. Esse vapor de água
salgada constrói estruturas de fina crosta que parecem ovos de sal.
Quando as fontes termais brotam sob a água empoçada, a salmoura se
cristaliza formando uma tubulação pela qual chega até a
superfície. Ali precipita uma crosta circular em volta do escoadouro
criando belas estruturas em forma de cogumelo que parecem nenúfares
flutuando sobre águas multicoloridas.
Se a tudo isso
quiserem chamar de arte, ressaltemos que se trata de arte efêmera.
Tudo é fugaz no Dallol, como cabe à extraordinária geodinâmica da
região. Tudo é cambiante. As áreas que ontem estavam tranquilas
hoje apresentam uma atividade inquietante. As fumarolas que ontem
fumegavam a oeste hoje o fazem a leste. As flores de sal que reluziam
brancas hoje estão amarelas e, depois de amanhã, vermelhas. E
desaparecerão para germinar em outros lugares. A poucos quilômetros
daqui apareceu um incipiente campo de fumarolas e fontes termais. Foi
ao lado de uma lagoa chamada “negra” cheia de uma solução
saturada de sal de magnésio. Levamos toda uma tarde para colher
amostras da lagoa, porque cair nela seria morte certa. A água está
a 70 graus centígrados e sua concentração é tão alta que tem uma
consistência de gel, do qual deve ser impossível sair. Alguns
quilômetros a sudeste formou-se outra lagoa, chamada “amarela”,
mortalmente bela, decorada com nenúfares de sal e cercada de
cadáveres de aves iludidas pelo demônio do Dallol que exalam um
odor repugnante.
O lugar mais cruel
da Terra
Além da beleza, que
por si só justifica o estudo e a conservação desse museu mineral,
o Dallol é importante por duas razões. A primeira é saber até que
ponto esse inferno está deserto ou se, pelo contrário, foi
colonizado por uma vida microbiana que a cada dia se revela mais
universal. Buscar sinais dessa existência em condições extremas de
acidez, salinidade e temperatura é a principal tarefa de
Purificación López-García e de sua equipe de microbiólogos do
Centro Nacional para a Pesquisa Científica (CNRS), da França, e da
Universidade de Paris Sul. Determinar os limites físico-químicos da
vida na Terra nos permitiria ampliar o tipo de ambientes onde se
poderia procurar vida em outros planetas e nos ajudaria a conhecer
melhor os primeiros estágios da vida na Terra, quando sua superfície
deve ter sido menos hospitaleira que agora. Por outro lado,
suspeita-se que nesses ambientes químicos extremos existam
estruturas minerais autoorganizadas que podem ter desempenhado um
papel crucial na Terra primitiva, quando a vida ainda não havia
aparecido sobre um planeta que estava brincando de criar as moléculas
orgânicas que a tornariam possível. Essa busca, dos lagos
extremamente alcalinos nas terras dos massais do Quênia até estes
lagos ultra-ácidos do território afar, é a tarefa de minha equipe
de cristalógrafos e geólogos do Conselho Superior de Pesquisações
Científicas (CSIC). Trabalhamos em conjunto, entre Paris e Granada,
ao amparo dos projetos do European Research Council, com a esperança
de que esta terra de Lucy, a australopiteco que iluminou a origem do
homem, também revele segredos sobre a origem da vida.
Fonte: brasil.elpais.com/brasil
Por: Chrystine Soares.
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